Observatório das Américas -Política externa da classe média

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Por Oswaldo Dehon | Cientista Político, Doutor em Relações Internacionais e Professor de Relações Internacionais do Ibmec BH.

Os primeiros cem dias da administração Biden mostram um retorno aos padrões básicos da política externa dos EUA, no pós-II Guerra Mundial: ação diplomática, multilateralismo, alianças e idealismo engajado, não raro associados às guerras por primazia. Um observador desavisado poderia concluir que se trata de uma política externa restauracionista. Biden, ao empregar vários ex-assessores de Obama, estaria voltando no tempo, pronto para uma nova Primavera Árabe, uma experiência aqui ou acolá de mudança de regime, em defesa de Wall Street e do humanitarismo intervencionista democrata. Nosso observador estaria enganado. Biden faz uma revisão histórica da política externa dos EUA.

Há elementos de continuidade. Sempre há. Biden carrega os ideais da hegemonia liberal das últimas décadas. Busca normalizar a defesa da democracia política e dos valores morais do liberalismo. Traz, consigo, porém, as lições de Lakner e Milanovic (2015), que ao medirem a desigualdade global, apontam que os campeões econômicos da globalização são os 1% mais ricos e a ascendente classe média asiática. A renda da classe média global manteve-se estagnada, no período. Na compreensão da classe média dos EUA (U$ 48 – 145 mil/ano) as causas poderiam ser encontradas na política externa idealista, permissiva e excludente, do pós-Guerra Fria.

O declínio da classe média global foi amparado por uma governança plutocrática que mesclaria negligência tributária; incentivos para geolocalização asiática de empresas de tecnologia; redução da proteção social para desempregados e licenciosidade para os imensos incentivos estatais chineses em indústrias-chave. Esse quadro não poderia ser contido com promessas ideológicas anticomunistas, isolacionismo ou um novo nacionalismo, em oposição à globalização. Essa foi a resposta de Trump.

Biden ancora-se no trabalho “Fazendo a política externa funcionar melhor para a classe média” realizado pelo Carnegie Endowment for International Peace (2020). Liderado pelo conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, pesquisadores entrevistaram famílias médias de trabalhadores e chegaram a conclusão que nem uma política externa liberal, nem o America First ou uma política progressista focada em temas sociais e climáticos seduziriam a classe média americana. Como alternativa pediam a liderança na recuperação econômica global; uma nova política de comércio exterior; assistência para trabalhadores que perdem seus empregos quando as indústrias migram e o fomento a uma estratégia nacional de competitividade, por meio de política industrial.

A referência imediata é F. D. Roosevelt (FDR). Ao tomar posse, em 1933, FDR enviou 15 projetos de mudanças ao Congresso, em um ativismo legislativo similar à Biden. Mas as reformas conhecidas por New Deal, que incluíam o Federal Reserve Board, o Conselho de Relações do Trabalho e o Social Security Act, vieram apenas em 1935. Biden anda mais rápido. Assinou 29 ordens executivas em 20 dias.

As reformas definidas por Biden visam aliviar as perdas ocasionadas pela pandemia (U$ 1,9 tri) e dinamizar a economia por um plano de infraestrutura (U$ 2,2 tri). O presidente ajusta sua política externa em um reconhecimento definitivo do fim da unipolaridade, e o faz por uma estratégia curiosa, isolando os muitos neocons republicanos no governo, bem como intervencionistas liberais. Biden enfrenta o legado de Reagan/Trump, ao aumentar a taxação dos mais ricos e das corporações. Porém, não sinaliza para a justiça tributária, pela não-progressividade. Enfrenta o consenso da austeridade, pelo aumento dos investimentos públicos e emissões de títulos. Mas, não se trata de um plano redistributivo clássico. Pode ser entendido como um plano reformista, com nuanças progressistas, não alinhado ao keynesianismo, que o critica. Não atende suas propostas de acesso à saúde, aumento de salário-mínimo, justiça racial e bem-estar, mas é um instrumento poderoso em busca de um novo consenso em política externa e econômica.

A política externa do Bidenomics refaz o conceito de interesse nacional pela defesa dos interesses da classe média em crise. Não usará a diplomacia para a instalação de empresas no exterior, mas antes, pelos riscos de evasão fiscal, incentivará investimentos domésticos. A política externa será pragmática, tecnocrática e flexível, como no mantra funcionalista de Mitrany. O desafio não será a avaliação dos cem dias, mas as eleições midterms de 2022.

Publicado em Jornal O Tempo.

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