Guerra inconstitucional na batalha dos poderes: artigo do Benedito Villela para blog do Estadão

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Tempo estimado de leitura: 7 minutos


Por Benedito Villela* e Matheus Barbosa**

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“As condutas criminosas do parlamentar configuram flagrante delito, pois verifica-se, de maneira clara e evidente, a perpetuação dos delitos acima mencionados, uma vez que o referido vídeo permanece disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores, sendo que até o momento, apenas em um canal que foi disponibilizado, já conta com mais de 55 mil acessos”.

Foi em despacho contendo o trecho acima destacado que o ministro Alexandre de Moraes embasou a ordem de prisão contra o deputado federal Daniel Silveira, que divulgou no YouTube – também obrigado judicialmente a retirar o conteúdo sob pena de multa diária de 100 mil reais – na tarde do dia 16 de fevereiro, vídeo atacando os ministros da mais alta corte do país com destaque especial ao signatário da ordem de prisão.

Repete-se flagrante delito não à toa: essa figura legal prevista no código de processo penal é requisito essencial, juntamente com a inafiançabilidade do crime em tese praticado, para que seja possível a prisão de um membro do
Congresso, nos termos do parágrafo segundo do artigo 53 da Constituição. Por flagrante delito se entende crime em andamento ou recém cometido, ou com perseguição imediata; crime inafiançável, entre outros, abarca a ação
contra a ordem constitucional e a democracia de grupos armados, sejam eles civis ou militares, conforme inciso XLIV do artigo 5° da Constituição Federal.

Esmiuçadas as tecnicalidades jurídicas, segundo o ministro Alexandre de Moraes o flagrante aconteceu por ter sido realizada a prisão pouco depois da divulgação do vídeo e ter permanecido disponível a todos, “sem solução de continuidade” (sic), e por se tratar de crime inafiançável por estarem presentes no caso os requisitos para a prisão preventiva, o que afastaria o direito à fiança, conforme consta nos incisos do artigo 324 do Código de Processo Penal.

Seu entendimento foi confirmado a unanimidade pelo pleno do STF já no dia 17, o que não põe fim à questão: a prisão precisa ser confirmada por maioria simples da Câmara (ao menos 271 votos), da mesma forma que a
denúncia já apresentada pela Procuradoria Geral da República contra o parlamentar.

Esquerda e direita, direitos e deveres, os 3 patetas, os 3 poderes, ascensão e queda, são dois lados da mesma moeda, assim cantou Humberto Gessinger, em uma canção que nasceu antes da Constituição Cidadã, em 1987, e se prova mais atual do que nunca. Politicamente, o que ocorre é o agravamento de uma queda de braço que já dura mais de dois anos, na qual o Executivo, por meio de um deputado que se autodefine como parcial e integrante da denominada “Bancada da Bala”, convoca a Câmara para provar sua lealdade em votação aberta, por chamada oral individual, e avaliar o presidente da casa, até então em lua-de-mel com o Planalto.

Mas do outro lado, replica o Supremo Tribunal Federal, que vem dando mostras de rachadura institucional cada vez mais visíveis, agravadas por caprichos individuais que evidenciam a advocacia em causa própria,
notadamente pelos mais ofendidos dentre os ilustres togados.

Vale lembrar o episódio, ao final de 2018, no qual um passageiro de um voo declarou repúdio à Suprema Corte para um ministro ali presente, e foi por ele ameaçado de prisão, sendo depois detido para “esclarecimentos” pela
Polícia Federal. Muitos viram abuso por parte desse ministro, que chegou a ter seu impeachment pedido e abafado pelo Congresso.

Poucos meses depois, vazaram dados referentes à evolução patrimonial de outro ministro do mesmo tribunal, bem como de sua esposa, que milita como advogada para uma grande banca, e novamente houve uma reação
desproporcional do STF, que por meio de sua presidência mobilizou novamente a Polícia Federal para apurar os excessos, sendo que saíram em defesa do magistrado os principais advogados criminalistas do país, geralmente aqueles cujos clientes têm um bom histórico em suas decisões.

Para coroar esse histórico de demonstrações de poder por parte da STF, foi a vez de seu próprio presidente, auxiliado por outro ministro (autor da bela definição sobre liberdade de expressão), determinar que fosse tirada
do ar uma reportagem que o vincularia a um empreiteiro preso durante a Operação Lava Jato, sob pena de multa diária de 100 mil reais pelo descumprimento da ordem, e intimando os responsáveis a depor em 72 horas.

Questionado, o personagem principal disse que estava protegendo o STF contra fake news, e que não se tratava de censura. Como se não houvesse remédios na lei para crimes contra a honra, ou prejuízos causados às pessoas.

Sem tanta surpresa, o presidente da corte, à época, era o mesmo ministro que declarou que a Operação Lava-Jato, último refúgio do já extinto do orgulho do cidadão brasileiro, era “um esquadrão da morte, e Moro era seu chefe” (sic), e que permitiu a divulgação de provas consideradas ilegais, à despeito de todo o protecionismo exacerbado exercido em causa própria com a máquina do Judiciário de suporte.

A conduta do deputado federal Daniel Silveira é, sim, digna de repreensão, e gera enorme repulsa tanto pela agressividade quanto pela baixeza de seu teor. O que se espera de um membro do Congresso Nacional é exprimir
suas discordâncias de forma assertiva e baseado em ideias, não em bravatas, ameaças e palavrões. Seu desprezo pelo Estado Democrático de Direito, porém, vai até a página 2: após sua prisão pelo vídeo em favor do desprezível AI-5, levantou em sua defesa a bandeira da liberdade de expressão e a prerrogativa da imunidade parlamentar, ambas lançadas do ordenamento jurídico em dezembro de 1968 (assim como a possibilidade de Habeas Corpus), e essenciais ao ordenamento jurídico vigente, que tanto critica.

Contudo, um erro não justifica o outro. A interpretação extremamente extensiva e casuística dada aos conceitos de flagrante delito e de crime inafiançável para fins de mitigação da imunidade parlamentar abre precedente perigoso, como ocorreu na Ação Cautelar 4039, julgada pelo mesmo STF (não com a mesma composição) e redundou na prisão do então senador Delcídio do Amaral.

É claro que, jurídica ou politicamente, não há mais parte correta ou vítima, salvo o moribundo Estado Democrático de Direito do Brasil. Existem somente indivíduos em cargos públicos se valendo do dinheiro público
para advogar em prol dos próprios interesses. Para tal se faz necessário retomar outros dispositivos, em especial o artigo 4º. da Lei 4.898 que tipifica abuso de autoridade ordenar ou executar medida privativa da liberdade
individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder.

Por fim, todos os atos citados (e implícitos) constituem, para o leigo isento ou para o técnico imparcial, não somente a proverbial destruição da Carta Magna, mas como quase todo o rol taxativo de motivos listados na Lei
do Impeachment – 1079/50, de 10 de abril de 1950, na qual estão sujeitos, e passíveis da pena de perda do cargo, o presidente da república, ministros de Estado, ministros do Supremo Tribunal Federal, sendo essa sanção,
embora politicamente impossível, a única juridicamente cabível, para todos os envolvidos. Qualquer outro deslinde será a celebração pública da volta do “Mecanismo”.

*Benedito Villela, gestor jurídico e professor de Direito do IBMEC/SP

*Matheus Barbosa, advogado, pós-graduando em Direito Corporativo e coach da equipe de Arbitragem Empresarial do IBMEC/SP

Confira o artigo publicado no Estadão: clique aqui.

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