As silenciosas reformas eleitoral e política

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Tempo estimado de leitura: 7 minutos

Artigo publicado no jornal Gazeta do Povo sobre reforma eleitoral e reforma política.

*Clever Vasconcelos

A cada dois anos o Congresso Nacional se mobiliza no sentido de alterar as regras eleitorais. Geralmente, a grande mudança surge como tubo de ensaio para os pleitos municipais, que são preparatórios às escolhas nacionais e estaduais. Neste ano, o cenário se alterou profundamente por alguns motivos, preponderantemente levados em conta pelo comportamento do presidente da República, em face do cenário da pandemia, mas também pela incidência dos reflexos da Lei Ficha Limpa, em algumas supostas candidaturas.

Como as alterações das regras eleitorais devem ocorrer há pelo menos um ano antes da data marcada para a escolha popular – seja por mandamento da Constituição Federal e para que o cenário político se prepare com antecedência, estamos em vias de atingir o prazo fatal: no início do mês de outubro deste ano. Entretanto, o alerta preocupante é como este processo está sendo conduzido e quais os pontos que abrangem as tendências dessas alterações.

Antes de tudo é recomendável separar as duas questões. Reforma eleitoral é uma coisa, e reforma política é outra, totalmente diferente. A primeira diz respeito exclusivamente às regras para o processo de alistamento dos eleitores, registro de candidaturas, convenções partidárias, arrecadação e aplicação das verbas eleitorais, campanhas, apuração, diplomação, prestação de contas e o andamento das ações eleitorais de um modo geral.

Já a segunda – reforma política –, por sua vez, se trata do sistema governamental estruturante dentro dos Poderes constituídos na relação entre Executivo e Legislativo. Portanto, a reforma eleitoral é instrumental, ou seja, de como se dará o funcionamento do processo de escolha. Sendo ela a conformação da base e da armação do relacionamento das ações de gestão da questão pública.

 No início deste ano descortinaram-se apenas os desejos de uma reforma eleitoral, seja porque a pretensão era dar mais dinamicidade ao processo, facilitando questões como o registro de candidaturas, mas também transparecendo o desejo da unificação da legislação, agregando a jurisprudência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) a um desejável sistema singular legislativo, visto que hoje temos um Código Eleitoral aprovado nos anos de fogo da ditadura militar, uma outra norma denominada Lei das Eleições, mais a Lei dos Partidos Políticos e a Lei das Inelegibilidades, que recebeu em 2010 o aditamento da Lei Ficha Limpa.

Contudo, a “golpe de caixa”, o Congresso Nacional abre as ventanas para uma mudança também no sistema político, com uma possível adoção distinta de sistema de governo, seja parlamentarista ou semipresidencialista, no intuito de enfraquecimento das ações do Poder Executivo, propiciando uma atuação executiva mais parlamentar, com a figura do 1º Ministro.   

Evidentemente não sou contra uma reforma política, nem mesmo contrário ao sistema de governo parlamentar. Aliás, muito pelo contrário, sou favorável à adoção deste método de relacionamento entre os Poderes da República. Todavia, discordo visceralmente como se conduz este processo, seja porque já tivemos um plebiscito a respeito em 1993, onde saiu vencedor o sistema presidencialista, carecendo de uma maior legitimidade popular para a virada da condução do país neste sentido sem um esclarecimento e legitimação da população a alterar as regras do jogo, em especial quando há possibilidade de reeleição do mandatário que exerce o poder.

Situação distinta seria numa outra ocasião, na qual o direito subjetivo a reeleição já não fosse mais presente (chefe do Poder Executivo no seu 2º mandato) e o elemento humano do Estado (o povo) pudesse discutir a questão amplamente, seja pelo método democrático direto (novo plebiscito) ou mesmo representativo com grande reverberação populacional reflexa no Congresso Nacional.

Mercê das consignações já realizadas, evidente que o país necessita de uma maturidade política para o ingresso no sistema parlamentarista, seja na sua categoria plena ou mesmo parcial, visto que os destemperos políticos sazonais que caracterizam nosso padrão de conduta política poderiam afetar a estabilidade desejável para a recuperação econômico e de credibilidade que a querida nação tem sido abalada pelo desenfrear de comportamento dos diversos setores sociais.

Assim, a discussão de uma reforma política entre quatro paredes no seio de gabinetes fracionados pelo Congresso Nacional carece de toda pertinência temática e oportunidade temporal ao complexo parlamentarismo ou sua vertente semipresidencialista que, quiçá, em momento mais oportuno e com toda maturidade exigível, possamos um dia chegar, que é meu desejo.

E tem mais. Não há sentido discutir um tema deveras intrincado – reforma política – em poucos meses no silêncio sepulcral que move o desejo de uma mudança que muitos nem mesmo sabem como se dá na prática. Certamente, se aprovado for, teremos o mesmo destino de 1962, em que se implantou o parlamentarismo sem conhecê-lo, simplesmente para enfraquecer o governo João Goulart. Precisamos ser responsáveis pelas nossas escolhas, ainda que inconsequentes, movidas por desejos reflexos e impensados, salvando o país do desequilíbrio institucional, conforme as regras basilares da Constituição Federal que sustenta a democracia ainda jovem do Brasil, em profundo aprendizado da tolerância.

Noutra banda, agora vem a reforma eleitoral, se alinhando na unificação dos sistemas legislativos, pretendendo criar um Código Eleitoral a absorver todas as demais leis eleitorais, o que não há nada de mal. Irá simplificar o manuseio. Aliás, seja bem-vinda, mas não com aconchegos de suprimir cláusulas e conquistas da Lei Ficha Limpa, que procurou moralizar o processo de seleção de candidatos que não se acomodaram na legalidade.

 A reforma eleitoral, em sua desvirtuação, excetuando os bons pontos unificação do sistema, pretende diminuir os prazos de inelegibilidade e facilitar o ingresso de candidatos que macularam os cofres públicos, enfraquecendo todo o sistema longamente conseguido pela lei de iniciativa popular. Isso não irá de encontro ao desejo da população e, silenciosamente, tem se alterado redação por redação, parágrafo por parágrafo, para que nas entrelinhas muitos se salvem e possam ficar livres do anseio cândido da sociedade em ser bem representada, por pessoas honestas límpidas e desprovidas do desejo do enriquecimento inconsequente às custas do empobrecimento da população e do esfacelamento dos empresários pagadores de uma carga inigualável de tributos, únicos no mundo, e em absoluta cascata.

A propósito, ainda quanto a reforma eleitoral, há o “distritão” e suas vertentes, que em alguns pontos pode ser útil ao processo de representação, especialmente quando acompanhado do sistema misto, recendo candidaturas majoritárias e proporcionais parlamentares na mesma circunscrição, mas ainda está desacompanhado de qualquer sistema lógico e coerente de divisão territorial, que necessitaria de um amplo e dedicado estudo, a eliminar preferências ideológicas e interessadas em cada repositório desse nosso grande país. Circunstâncias que, por si só, desautorizam a discussão de tão importante assunto neste silêncio de debate legislativo, empobrecendo um tema que poderia render muitos frutos produtivos em longo prazo.

 Sobre tudo isso, o sistema eleitoral não pode ser instável, com mudanças desprovidas do debate com a sociedade e com especialistas no tema, que foram deixados de lado da conversa. Há um experimento de interesses momentâneos. Existe em curso, evidentemente, uma reforma eleitoral boa e ruim, mas também uma política impertinente ao momento, todas ensurdecedoramente silenciosas. Claro está, outrossim, que a reforma que se pretende mais interessa a determinados grupos, se esquecendo daquela adequada ao país. Enquanto não olharmos mais além, prevalecerão os anseios pessoais ou coletivos ao verdadeiramente nacional.

* Professor de Direito Constitucional e Eleitoral do Ibmec/SP. Doutor em Direito (PUC/SP), e promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Artigo publicado no jornal Gazeta do Povo: clique aqui

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