Reginaldo Nogueira, Ph.D. em economia e diretor geral do Ibmec SP e DF
Matteo Lanzafame, Ph.D. em economia e economista sênior do Banco de Desenvolvimento Asiático*
O PIB (Produto Interno Bruto) é a medida mais comumente usada para a avaliação da produção e da renda dos países. Mais do que isso, sua base per capita é a principal proxy do nível de vida da população, devido à sua correlação com variáveis tais como expectativa de vida, mortalidade infantil e consumo de calorias diárias. Outras medidas disponíveis buscam alternativas mais holísticas na tentativa de capturar indicadores de desenvolvimento humano e felicidade, mas o PIB per capita é normalmente bastante correlacionado também com essas medidas. E, como a maioria dos países possuem sistemas de contas nacionais relativamente confiáveis e fáceis de serem construídos e calculados, a utilização do PIB e de sua variável per capita é universal.
Todavia, o PIB per capita não é uma medida perfeita do nível de vida da população em diversos aspectos, motivo pelo o qual a busca de medidas alternativas sempre retorna ao debate político e acadêmico. Nesse sentido, um importante ponto a se destacar é que o PIB não captura perfeitamente transações ocorridas fora do mercado, algo que possui implicações mais severas durante a pandemia da COVID-19. Lockdowns e quarentenas se tornaram medidas implementadas de maneira ampla e recorrente ao redor do planeta como forma de conter o avanço do vírus, levando a contrações expressivas da atividade econômica, pelo menos conforme medidas pelo PIB. O 2º trimestre de 2020 mostrou a face mais dura desses efeitos, com queda média do PIB dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 9,8% frente ao 1º trimestre, e de 9,7% no Brasil.
Tais quedas são facilmente compreendidas dado que o fechamento de fábricas e escritórios levou à paralisia completa ou parcial da produção de bens e serviços. Indo além, as restrições de funcionamento de escolas moveram alunos para um modelo remoto, gerando dificuldades de mobilidade para pais e mães participantes do mercado de trabalho. Por fim, a mobilidade social enfrentou restrições que levaram à queda da demanda de serviços diversos como barbearias e cabeleireiros, hotéis, restaurantes, bares e mesmo hospitais.
Todavia, para algumas atividades muito da produção pode ter desaparecido apenas das contas nacionais, mas não tenham sido totalmente encerradas. Por exemplo, considerem quantas refeições feitas em casa substituíram refeições feitas em restaurantes, ou quantas viagens próprias substituíram serviços interrompidos de transportes públicos. Isso para dar alguns exemplos. Em outras palavras, embora as quedas do PIB durante a pandemia tenham alcançado níveis históricos inéditos, na verdade a atividade econômica se reduziu menos do que isso. Essa atividade se moveu do mercado para os domicílios, fora das medidas oficiais.
Isso não significa que os impactos econômicos da COVID-19 devam ser minorados, ou que o acompanhamento do PIB deva ser abandonado. Uma refeição em casa não necessariamente oferece o mesmo benefício para um indivíduo do que uma refeição feita em um restaurante, de forma que ambas não são substitutas perfeitas. Mais do que isso, diferentes indivíduos possuem diferentes capacidades de trabalho doméstico. Mas o ponto a se destacar é que em um momento de tamanha particularidade como o atual, a comparação estrita do PIB pode levar a conclusões exacerbadas sobre os impactos sobre o nível de vida e consumo da população.
Efetivamente o que o momento gera, em adição a essa movimentação de produção do mercado para produção doméstica, é um aumento da discrepância entre diferentes atividades econômicas, notadamente aquelas que podem ser feitas em home-office e aquelas que não podem. Disso, certamente, decorre outra diferença que afeta nível de vida e satisfação individual durante a pandemia. Não apenas há diferenças na produtividade da produção doméstica entre indivíduos, mas alguns conseguem ainda manter boa parte de seus rendimentos em atividades de mercado durante a pandemia. Disso decorre uma heterogeneidade ainda maior dos efeitos sociais e econômicos da pandemia, que uma avaliação exclusiva do PIB nos impede inferir.
Em resumo, embora o PIB seja a principal e mais comum medida de atividade econômica e de bem-estar social, em um momento tão grave e atípico quanto o atual ele se mostra claramente insuficiente. A pandemia de COVID-19 gera efeitos econômicos que vão além da avaliação apenas do que conseguimos captura pelas contas nacionais, e cautela na avaliação de novos dados econômicos são fundamentais para uma avaliação completa do cenário.
*As opiniões contidas nesse artigo são exclusivas dos autores, e não representam um posicionamento do Banco de Desenvolvimento Asiático (Asian Development Bank), Ibmec ou quaisquer instituições por eles afiliadas.