Artigo – Lei de Segurança Nacional para quem?

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Tempo estimado de leitura: 4 minutos

A famigerada Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983), há muito tempo criticada por diversos juristas, voltou a ser notícia nos últimos meses, por causa de sua aplicação contra diversos comunicadores da mídia que criticam o governo federal ou, diretamente, o Presidente da República.

Segundo consta no noticiário, houve um grande aumento nos inquéritos policiais para investigar supostos crimes contra a Segurança Nacional praticados por opiniões negativas a respeito da atuação do Chefe do Executivo no combate à atual pandemia.

A análise dos crimes contra a Segurança Nacional requer, em primeiro lugar, confrontar seu contexto com a atual Constituição Federal. Por ser uma lei anterior a 1988, editada durante o regime militar, sua recepção pela Carta Magna é duvidosa. Os crimes ali previstos são amplos e abertos, o que permite às autoridades afirmarem que qualquer comportamento pode se enquadrar como atentado à Segurança Nacional. Trata-se de afronta ao princípio da legalidade, que impõe, entre outras regras, que os crimes sejam descritos da maneira mais restrita possível, para evitar arbitrariedade em sua aplicação. Assim, faz-se necessário revogar a lei e editar outra, em seu lugar, adequada aos dispositivos constitucionais.

Sobre o seu conteúdo, deve-se atentar que seu art. 1º dispõe que a lei “prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: I – a integridade territorial e a soberania nacional; II – o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; e III – a pessoa dos chefes dos Poderes da União”. Não restam dúvidas de que os crimes contra a Segurança Nacional requerem a mínima possibilidade de colocar em risco a soberania nacional e as instituições democráticas. Sem esse requisito não há delitos dessa natureza mas os comportamentos podem configurar outros crimes previstos no Código Penal.

O art. 26 da Lei incrimina a calúnia e a difamação contra o Presidente da República. Caluniar é acusar falsamente da prática de crime, enquanto difamar é atribuir fato ofensivo à honra. Esses crimes também estão previstos no Código Penal. Então, qual a diferença entre os delitos? Na Lei de Segurança Nacional exigem-se a intenção e a probabilidade de colocar em risco o Estado democrático de direito, o que não existe no Código Penal. É o que diz a própria lei: deve-se levar em consideração a motivação e os objetivos do agente. Críticas ao Presidente da República, mesmo que incisivas e pesadas, não são suficientes para a aplicação da referida lei.

Substituir o Código Penal pela Lei de Segurança Nacional implica a possibilidade de penas maiores (em caso de condenação), atuação da Polícia Federal ao invés da Polícia Civil, envolvimento do Ministério Público Federal, competência da Justiça Federal e o estigma de o acusado atentar contra o próprio país. Por todas essas consequências – repita-se – só é permitido aplicar a lei se o investigado tiver o intuito de colocar em risco as instituições democráticas e, principalmente, se seu comportamento for capaz de criar esse perigo. Muito difícil uma opinião ou ofensa ser capaz de desequilibrar as estruturas do Estado e colocar em risco a democracia, mesmo que as palavras utilizadas sejam agressivas e contundentes.

Por outro lado, a aplicação da Lei de Segurança Nacional em situações sabidamente incabíveis pode configurar crime de abuso de autoridade, caso fique configurada a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou o mero capricho ou satisfação pessoal. Os excessos na utilização de uma lei mais severa que o Código Penal, com o conhecimento de que não seria o caso de sua aplicação, é comportamento arbitrário que deve ser reprimido.

Se o Presidente da República se sentir profundamente ofendido com a opinião de uma pessoa, devido ao uso de expressões contundentes, a regra deve ser a aplicação do Código Penal. A Lei de Segurança Nacional – que já deveria ter sido revogada e substituída – só é cabível em situações excepcionais. O que prejudica a harmonia entre as instituições é a banalização de uma lei autoritária herdada de um período de ditadura. E antes que alguém imagine que o intuito deste singelo artigo seja atentar contra a Segurança Nacional, e que eu seja enquadrado, manifesto expressamente que aqui existe uma mera opinião cujo objetivo é contribuir ao debate sobre os riscos à democracia.

*João Paulo Martinelli, professor no Ibmec SP. Advogado, mestre e doutor em Direto Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra.

Este artigo foi publicado no Blog do Fauto, no Estadão: clique aqui

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