Nos debates sobre o novo Marco Legal das Startups, a Lei Complementar nº 182/2021 (LCP 182/2021), de 1º/6/2021, sinto que um problema relevante não tem sido tratado com a devida atenção nesses debates: “O acesso a financiamento para startups via mercado de capitais”.
Apesar de termos notícias de startups que abriram capital recentemente no Brasil, é fato que a bolsa não é um lugar para pequenos, ainda que disruptivos ou revolucionários. Assim como as novelas costumam terminar em casamentos em seus últimos capítulos, a abertura de capital é a celebração do sucesso de uma companhia, permitindo captar para que cresça em uma escala muito maior e, ao mesmo tempo, viabilizando a saída daqueles que incorreram em maiores riscos durante as etapas anteriores.
Se você é um jovem Bill Gates, Steve Jobs ou Jeff Bezos, por mais revolucionária que sua ideia possa parecer, não vai ter facilidade para financiar suas ideias.
Quando se começa um negócio, ou você tem capital próprio para investir ou pede a familiares e amigos que acreditem na sua proposta. Em inglês, fala-se em friends, family or fools (FFFs) como fontes primárias de financiamento. Quem poderia prever que o modelo de negócio de YouTube, Twitter, Pinterest, Netflix, Aribnb ou Uber seriam vencedores? Veja o modelo da Buser no Brasil, por exemplo, e a grande insegurança jurídica envolvendo investidas das companhias incumbentes contra a nova entrante. Se o futuro tem por ofício ser incerto, investir em uma startup é tatear no escuro.
Nesse contexto, para obter um empréstimo no banco, é preciso oferecer garantias ou contar com a inteligência de dados de fintechs para avaliar seu risco de crédito. O mais comum, no entanto, é vender a sua ideia para investidores-anjo e fundos especializados em capital de risco (venture capital). Quando o modelo é validado ou, excepcionalmente, se há uma perspectiva de crescimento muito significativa, é possível recorrer a fundos de private equity. De acordo com o hub Distrito, o investimento em startups entre 2020 e 2021 ganhou patamares únicos na história do mercado brasileiro. Testemunhamos uma enorme liquidez, com inúmeras notícias diárias de rodadas de investimento, aquisições e outras operações societárias. Unicórnios, outrora muito raros, parecem brotar com menos timidez.
No clímax de seu processo evolutivo, uma companhia bate à porta da B3 e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para requerer sua abertura de capital: é necessária a adoção de uma estrutura de governança complexa e o cumprimento de deveres de prestação de informações, deveres de conduta, sujeição a auditoria independente.
Assim, a regulação financeira acaba por restringir, dolosa ou culposamente, o acesso ao mercado de capitais a empresas nascentes.
É preciso ter track record, comprovar experiência para acessar a poupança popular. Os investidores precisam ter informações sobre os riscos de um projeto, das competências dos fundadores da empresa e de outras variáveis que, quando falamos de inovações genuinamente disruptivas, são informações escassas ou inexistentes.
A CVM tem tentado racionalizar esse processo e está em curso uma audiência pública para reforma do regime de ofertas públicas. Até aqui, as pequenas e médias empresas podem contar apenas com financiamento participativo em plataformas reguladas, no regime que conhecemos como crowdfunding, o qual ainda pode ser considerado bastante incipiente, em face do número de plataformas e dos volumes de captação divulgados no site da CVM. Outra opção é realizar uma oferta pública de debêntures com esforços restritos para investidores qualificados, com protagonismo de fundos de investimento ligados a bancos.
São duas a perguntas principais que precisamos endereçar. Como viabilizar o acesso ao mercado de capitais para startups? Ainda, é realmente necessário criar esse mercado de acesso?
A LCP 182/2021 traz algumas possibilidades. Contudo, à semelhança da Lei de Liberdade Econômica, deposita-se esperança em princípios que, de algum modo, se perdem no caminho até a prática de atos administrativos.
Surge a sociedade anônima simplificada que diminui custos de observância da legislação societária (embora não tenha sido reduzida a complexidade do direito de retirada) e recepciona mecanismos de financiamento que já vinham sendo utilizados na prática em negociações de rodadas de investimento, como é o caso do mútuo conversível em participação.
Ainda, a LCP 182/2021 traz a previsão de fundos de investimento em participação (FIP) em startups (capital semente; empresas emergentes; e empresas com produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação) e delega à CVM a competência para regular os aportes nesses FIPs.
Penso que essa nova previsão permitirá que os investidores tenham novas “categorias” para escolher, mas não há nenhuma vantagem real, nenhum incentivo adicional para que realizem esse tipo de investimento, para além do que já faziam antes. Porém, FIPs continuam sendo destinados a investidores qualificados, logo não há impacto direto para investidores de varejo (o que não necessariamente é algo ruim). A menos que a CVM surpreenda e mitigue essa exigência.
Não há incentivos fiscais para esses investimentos, distinguindo-os dos fundos de investimento em infraestrutura ou dos fundos de investimento nas cadeias produtivas agroindustriais (Fiagro), cujos benefícios fiscais tinham sido vetados, mas os vetos foram derrubados pelo Congresso. A história do mercado de capitais brasileiro mostra que só há redirecionamento de recursos quando há incentivos fiscais, algo que ocorre desde a criação dos Fundos 157 no final dos anos 1960. Se o “poder de tributar é o poder de destruir”, o poder de isentar é o poder de criar.
Peço que você, leitor ou leitora, perdoe meu otimismo racional, desencanto pessimista ou, para alguns, apenas cinismo. Ao que tudo indica, prevalecerá o entendimento de que investidores de varejo não têm a mesma capacidade de investidores institucionais para avaliar o risco ao colocar seus recursos em startups, embora possam, ao arrepio das regras de suitability, negociar derivativos complexos, sobre os quais muitas vezes não têm a menor ideia dos riscos incorridos.
A LCP 182/2021 tem ótimas intenções, mas, a meu ver, carece de mecanismos efetivos para ampliar o financiamento a startups. Qualquer iniciativa regulatória que altere essa expectativa no futuro próximo, será uma grata surpresa.
*professor de Direito, Tecnologia e Finanças no Ibmec-SP, consultor em Regulação Financeira, doutorando (USP) e mestre (FGV) em Direito e engenheiro de Computação (ITA).
Artigo publicado no portal Conjur: confira.