Nossas instituições estão contaminadas por um viés punitivista e, ainda pior, por um racismo estrutural
Que o sistema penal brasileiro é seletivo não é novidade, basta dar uma olhada nos dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional para perceber que a maioria dos presos no Brasil são pobres, sendo que quase 40% deles ainda aguardam julgamento. Também há uso indiscriminado de prisões nas grandes operações midiáticas, ainda que, posteriormente, alguns dos acusados sejam absolvidos. De uma maneira geral, o sistema penal brasileiro precisa ser repensado e o primeiro passo é abandonar a mentalidade inquisitorial, que predomina nas instituições envolvidas.
Além do problema prisional, há uma escolha direcionada para operações policiais e o modo como são efetuadas. Recentemente, vimos a desastrosa operação na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que resultou em 28 mortos, incluindo um policial. O que essa operação pode nos mostrar? Primeiro que, na prática do sistema penal, a pena de morte existe no Brasil, apesar de sua proibição constitucional. Segundo, mesmo sem divulgar as identidades dos mortos, houve muitas manifestações de louvor por parte da sociedade e de alguns políticos, como se todos fossem criminosos apenas por serem pobres e moradores de favela.
A guerra às drogas vem se mostrando cada vez mais ineficaz e, por isso, nossos legisladores devem iniciar um amplo debate para a adoção de uma política de redução de danos. A criminalização das drogas gera a violência contra os mais vulneráveis, porque os usuários estão protegidos nas áreas nobres. Trata-se de uma guerra injusta, cujos inimigos são todos aqueles que estão próximos dos traficantes, não por opção, mas por necessidade. Os membros de facção controlam regiões abandonadas pelo Estado e os moradores são submetidos às suas determinações. As autoridades não têm interesse em retomar esses locais e só aparecem com a força bélica letal, para impor o terror aos moradores.
As facções são ampliadas na medida em que o sistema carcerário é preenchido com novos detentos. Já que o Estado não tem o domínio da maioria dos estabelecimentos prisionais, quem ali ingressa tem que se submeter a algum grupo delitivo se quiser sobreviver. Quanto mais gente é presa, melhor para as organizações criminosas. Entretanto, parece que essa conclusão é ignorada pelas autoridades do sistema penal. Pequenos delitos, muitas vezes, levam seus autores à privação de liberdade porque ainda prevalece uma cultura punitiva, segundo a qual o crime se combate com repressão.
O mesmo sistema penal que permite o comando dos estabelecimentos pelo poder paralelo é o mesmo que o presenteia com novos integrantes a cada dia. É um círculo vicioso de retroalimentação, o que confirma o ditado de que a penitenciária é a maior escola do criminoso. Se somarmos os presos por tráfico de drogas e por crimes contra o patrimônio, chegaremos a 70% da população carcerária, formada predominantemente por pessoas que sequer concluíram o primeiro grau escolar. Por outro lado, apenas 0,17% dos detentos são acusados de crimes contra a Administração Pública. Sempre há uma explicação das autoridades: ricos possuem melhores advogados e, por isso, conseguem ficar impunes. Talvez a causa seja outra: o empenho dos integrantes do sistema penal é muito maior em perseguir as pessoas indesejáveis, aquelas que, muitas vezes, não podem pagar um defensor.
Nossas instituições estão contaminadas por um viés punitivista e, ainda pior, por um racismo estrutural. Os dados do DEPEN comprovam que o número de presos continua a crescer e, quase sempre, são pessoas provenientes de classes sociais mais baixas e áreas vulneráveis. Com a terceira maior população carcerária do mundo, o Brasil não consegue resolver o problema da violência apenas pela repressão. A lição parece não ter sido aprendida ou, se foi, nossas autoridades continuam a agir como inquisidores que veem no encarceramento uma maneira de excluir ainda mais as pessoas indesejadas.
*professor do Ibmec SP, advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra.
Artigo publicado pela Revista Forum