Apostas em instrumentos que ameaçam a todos

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É ingênuo negar que vivenciamos um período de elevadas tensões. Os conflitos entre grandes potências estão de volta. A péssima notícia para todos é que também estão de volta as práticas unilaterais. Esse é um caminho comprovado de elevar as tensões e conduzir a guerra mundial.

Fazer justiça pelas próprias mãos gera ajustes assimétricos e instáveis. No curto prazo pode parecer vantajoso usar da retorsão (medida que um Estado adota com o intuito de revidar de maneira idêntica à violência ou prejuízo sofrido por outro Estado), da represália (alegando a existência de uma injustiça ou da violação de um direito, praticar medidas violentas contra os bens ou às pessoas do Estado ofensor) ou da compellence (geralmente ameaçando a punição ou praticando um prejuízo reversível como forma de persuadir um oponente a desistir de algo). No longo prazo, o clima de desconfiança e as constantes mudanças na legislação, atrapalham os investimentos produtivos e o comércio internacional.

Depois de duas grandes guerras no século XX o debate acadêmico e a política internacional deram vitória ao liberalismo internacional. Montou-se um sistema multilateral, com diplomacia aberta e oportunidade de ampla participação tanto governamental, quanto empresarial e dos demais segmentos da sociedade civil organizada. A guerra comercial entre EUA e China só prova que o liberalismo não é um valor assegurado, nem nacional nem internacionalmente.

No mundo real, não existe abertura pelo simples fato de ser o mais adequado. A liberalização construiu-se e precisa ser mantida na base da reciprocidade de oportunidades. Esse ensinamento vez de Smith e segue na estrutura dos encontros diplomáticos que negociam a abertura comercial.  Quando sentam para negociar os países exigem concessões mútuas, ou seja, para liberalizar certo setor exigem que outro país liberalize um setor específico da economia dele. Isso é feito em larga escada de forma a construir um sistema pelo qual pretende-se que os segmentos improdutivos sejam progressivamente eliminados, percam força e capacidade de lobby a favor do protecionismo, e os competitivos cresçam, gerem emprego e renda, ganhem força e capacidade de lobby a favor da constante liberalização.

É um processo. As forças contrárias são muitas, a mais forte de todas: o discurso nacionalista. Meu país acima de tudo e de todos, é o erro!

Nem a OMC nem a UNCTAD possuem status supranacional. Não podem agir de ofício contra violações aos compromissos firmados pelos países.  Como todo o Direito Internacional esses organismos multilaterais são formados na base voluntarista. Ninguém é obrigado a participar ou se manter comprometido. Da mesma forma os EUA, como membro da OMC, não eram obrigados a reconhecer a China como economia de mercado e permitir que ela ingressasse na OMC, mas fizeram. Os EUA também não eram obrigados a negociar e concordar com o NAFTA, mas fizeram.

Hoje há um discurso e uma prática revisionista unilateral. A retórica de Trump, que acusa os parceiros de terem abusado da boa vontade dos EUA ou da ingenuidade de governos americanos passados, é de rir. Os Estados são racionais. Os governos são racionais; quando muito, podem estar mal informados. É um discurso populista que pode ter apelo junto ao eleitorado, mas que não é bem visto na diplomacia, causa um estrago gigantesco para a reputação nacional. Quebra com a cláusula de ouro, o pacta sunt servanda. Ganha fama de violador de compromissos. Os países ficam reticentes em firmar acordos e receosos de que os existentes sejam abandonados.

Quebrar compromissos multilaterais é ainda mais perigoso. Não prejudica apenas a relação bilateral, mas põe em risco todo o sistema construído para gerar e garantir a ordem no sistema internacional.

Os arranjos multilaterais não podem fazer nada. Os que existem são meros fiscais dos acordos. A OMC só pode agir quando um país acusar outro de violar os compromissos assumidos. Daí os países são convidados à negociação que, se for malsucedida, dará espaço a um painel que pode ao final do processo conceder direito de retaliação ao prejudicado pelas distorções e ilegalidades do outro. Entra-se em novo ciclo de limitação do comércio bilateral entre os envolvidos.

Não parece ser o interesse dos EUA ou da China levar a disputa para a OMC. A China tem respondido as acusações dos EUA com acusações inversas (acusa o governo dos EUA de mentir ou de praticar “terrorismo econômico”). Os EUA seguem elevando o tom, com palavras fortes e incomuns no jargão diplomático. Ambos impõem novas limitações ao comércio recíproco.

O caso da OMC é sensível. Criada como forma de aperfeiçoar os painéis de solução de conflito e desembolar novas rodadas de liberalização, a OMC entregou apenas parte do esperado. Países que formam blocos para ganhar peso nas negociações e a cláusula do single undertaking, tem travado a rodada Doha. A opção da liberalização através de acordos bilaterais é uma saída momentânea, mas como eu já disse, leva a ajustes assimétricos no longo prazo.

Vladimir Feijó

Crédito: Gazeta do Povo

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