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O artigo de hoje foi escrito pelo professor do Ibmec Brasília, Phelippe Oliveira, fique por dentro!
A reforma da tributação internacional e o fantasma do imposto sobre serviços digitais.
Phelippe Toledo Pires de Oliveira
Muito tem se falado no Brasil da reforma tributária do consumo proposta pela PEC 45. Mas está também em discussão outra proposta de reforma tributária, essa em nível mundial. Conhecida como BEPS 2.0, em referência a uma segunda geração do projeto BEPS encabeçado pela OCDE e G20 para combater a prática de erosão da base tributável e transferência de lucros para países com baixa tributação, essa proposta propõe uma reviravolta na tributação internacional.
O projeto BEPS 2.0 é composto por duas linhas de atuação, conhecidas como pilares, razão pela qual é também chamada de “solução de dois pilares”. O Pilar 1 visa a alocação de lucros para o país do mercado consumidor. Já o Pilar 2 pretende implementar um imposto mínimo global, conhecido como “GloBE”, à alíquota de 15%. Enquanto a ideia do imposto mínimo global segue adiante com vários países implementando-o em suas legislações, o Pilar 1 parece ter empacado.
A ideia de se alocar mais lucros para o país de mercado não é nova. Antes mesmo do projeto BEPS, já havia uma preocupação com planejamentos tributários das empresas da economia digital para pagar menos impostos no país do mercado consumidor dos seus produtos/serviços. Por essa razão, o projeto BEPS dedicou uma ação específica para tratar da tributação da economia digital. Mas o relatório final dessa ação não foi conclusivo.
Historicamente, as regras de tributação internacional baseiam-se na tributação dos lucros pelo país de residência da empresa com a possibilidade de tributação na fonte em algumas situações. A proposta do Pilar 1 pretende realocar parte dos lucros das grandes empresas para os países onde elas vendem seus produtos e serviços, independentemente de haver presença física no local. Essa nova regra se aplicaria apenas a um grupo seleto de empresas.
O alvo das novas regras do Pilar 1 seriam as grandes multinacionais com faturamento acima de € 20 bilhões e lucratividade elevada, entre as quais estariam as gigantes norte-americanas da economia digital, como Google e Amazon. A ideia do Pilar 1 é que parte do lucro dessas empresas fosse tributado no país onde estão os seus usuários. Não à toa, no início, a proposta sofreu forte resistência do governo dos Estados Unidos.
A situação mudou a partir do governo Biden, no início de 2021. Capitaneado pela Secretária do Tesouro, Janet Yellen, os EUA não mais se opuseram à ideia do Pilar 1. A partir de então, as negociações envolvendo a solução de dois pilares evoluiu. Em outubro do mesmo ano, a OCDE/G20 anunciou que teria chegado a um acordo histórico com mais de 130 países sobre as diretrizes da solução de dois pilares, remanescendo apenas os detalhes dessas regras[i].
Posteriormente, a OCDE/G20 divulgou estudos contendo a fórmula de cálculo para distribuição desses lucros (“amount A”). Essa fórmula revelou-se bastante técnica e complexa, gerando muitas dúvidas. Propôs-se, também, que sua implementação se desse por meio de um tratado multilateral que entrasse em vigor apenas após sua ratificação pelos países onde se situam as principais empresas impactadas pelas novas regras[ii].
A ausência de acordo em relação a uma proposta consensual para o Pilar 1 pode fazer retornar um fantasma que assombra as empresas da economia digital: o imposto sobre serviços digitais (“digital service tax”). Também conhecido simplesmente pelas iniciais “DST”, esse imposto foi implementado por alguns países, tendo ganhado vários adeptos ao longo dos últimos anos. Em grande parte deles, como uma solução interina até que o Pilar 1 seja implementado.
A França foi uma das primeiras a propor o tributo ainda em 2019. O imposto, que ficou conhecido no país como “GAFA” (em alusão às iniciais das principais empresas norte-americanas Google, Apple, Facebook e Amazon), incidia à alíquota de 3% sobre o faturamento anual das empresas de tecnologia no país[iii]. Após o anúncio do imposto, o então presidente Donald Trump ameaçou retaliar a França com a imposição de tarifas ao vinho, queijo e outros produtos franceses.
O Reino Unido seguiu o mesmo caminho criando um DST. O tributo, cobrado a partir de abril de 2020, incidia à alíquota de 2% sobre o faturamento das empresas que exerçam atividades de ferramenta de busca, serviços nas mídias sociais e plataformas de venda online. Devem pagar o tributo os grupos de empresas com faturamento global superior a 500 milhões de libras esterlinas, dos quais mais de 25 milhões sejam decorrentes de usuários no Reino Unido.
A partir de então, vários outros também criaram impostos sobre serviços digitais. No entanto, alguns deles suspenderam a cobrança do tributo quando do anúncio do acordo em relação à solução dos dois pilares em outubro de 2021. Foi o caso, por exemplo, da Áustria, França, Itália, Espanha, Reino Unido e da Turquia[v]. Agora, com o atraso no Pilar 1, esses países podem vir a retornar a cobrança até como forma de pressionar a sua implementação.
Recentemente, noticiou-se que o Canadá também estaria pensando em implementar o imposto sobre serviços digitais. Cogitado há alguns anos, a ideia foi suspensa para aguardar as negociações do Pilar 1. O imposto canadense seria cobrado à alíquota de 3% sobre o faturamento de algumas atividades, entre as quais plataformas digitais, mídias sociais e anúncios online[vi]. Bastou o anúncio para que já começassem as ameaças de retaliação pelos Estados Unidos[vii].
Enfim, enquanto o Brasil foca na sua reforma tributária do consumo, discute-se atualmente uma reforma da tributação mundial composta por dois pilares: um para alocar mais lucros para os países onde se situam os consumidores; outro para implementar um imposto mínimo global. Apesar dos avanços, a demora na sua implementação, notadamente em relação ao Pilar 1, tem feito ressurgir o fantasma do imposto sobre serviços digitais.