Pelo professor Oswaldo Dehon, para o Estadão.
O Ministério da Defesa entregou uma nova revisão da Política Nacional de Defesa (PND), da Estratégia Nacional de Defesa (END) e do Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN) ao Congresso, para debate e aprovação. A atualização dos documentos básicos de defesa é rotineira e prevista em lei. Quadrienalmente são feitas as revisões, para ajustar cenários ao desenho da política. O programa do atual governo sugeria uma inflexão na PND, em direção a uma política que conferisse maior destaque a operações de garantia da lei e da ordem (GLO), integradas as forças de segurança. Mas, do que tratam essas políticas e quais as principais mudanças ante a revisão de 2016?
A PND é a política que estabelece os conceitos e diretrizes da atuação do Brasil no ambiente externo e, subsidiariamente, em plano doméstico. Criada em 1996, seus objetivos são assegurar os interesses nacionais e a defesa do território contra ameaças externas à soberania. A END, lançada em 2008, define ações para que se alcancem os objetivos da PND. Sua essência é a organização e composição de efetivos das Forças Armadas, a estruturação da indústria de material de defesa e as ações estratégicas de defesa, alinhadas à PND. Já o LBDN é um inventário público de nossas capacidades, dos efetivos, instalações militares, orçamento e políticas que norteiam a segurança nacional. Foi concebido em 2012 e, além de dar transparência interna às ações da política de defesa, tem uma finalidade clássica: restringe possível má compreensão regional e internacional da postura e dos objetivos da defesa. Apesar de ser uma política genuinamente top-down, com baixa participação na sociedade, inaugurou uma reflexão pública sobre meios e fins, dispêndios e efetividade para a área.
Na revisão de 2016 a noção da ordem política global era de multipolaridade cooperativa, interdependência e instabilidade, que se faziam notadas por insurgências e guerras híbridas. Em 2020 o que se lê na PND é o retorno à competição global por poder. Menções aos EUA ou à China são elusivas, ante a observação de que o cenário deve sustentar um aumento dos gastos de defesa no Brasil. Apesar das mudanças na big picture, não há na PND 2020 alteração da área de prioridade geoestratégica – mantêm-se a América do Sul, o Atlântico Sul, a África Ocidental e a Antártica.
Não surpreendente, mesmo com o consistente movimento de desintegração regional e aliança com os EUA, desde 2017, o processo, liderado pelo Itamaraty, desmontou instituições como a Unasul e seu Conselho de Defesa, abandonou a Celac e tem se distanciado da Argentina, sócia no Mercosul. A nova proposta de inserção contempla um movimento duplo, em pinça, realizado pelo Planalto, exercido por Ministério da Defesa e Itamaraty. A novidade inquietante é a securitização da região, exposta pela PND, ante a presença dos interesses de potências extrarregionais. Em 2016, a PND elegia os efeitos da ascensão internacional do Brasil como uma ameaça crível. Não há mais esse risco. A nova fala em terrorismo, tráfico de armas, insurgências, pandemias, ameaças cibernéticas e, com destaque, as tensões ligadas à Amazônia. A complexidade desses conflitos teria causado um efeito spillover para toda a América do Sul, percebida como um único complexo regional de (in)segurança.
A concepção política de defesa conserva o mesmo tripé anterior: desenvolvimento, diplomacia e defesa. Todos os objetivos de defesa foram mantidos, mas houve uma alteração na ordem dos pressupostos de ação. Em 2016 se privilegiavam a solução pacífica de controvérsias, o apoio ao multilateralismo e a atuação sob a égide de organismos internacionais. Em 2020 os supostos são a motivação, o preparo e o equipamento das Forças Armadas, a regularidade orçamentário-financeira e a mobilização em prol da defesa.
Dois pontos finais. A PND, a END e o LBDN não falam a mesma língua da política externa declaratória brasileira, sob o chanceler Ernesto Araújo. A mudança de tom e posição não alteraram a essência da estratégia da presença, a resiliente dissuasão e a escolha dos setores estratégicos. Diante das limitações correntes da formulação e implementação da política externa brasileira, minha hipótese é que o controle da agenda externa do País pode estar se aproximando das Forças Armadas. Afinal, o contraste, a ideologização e as magras entregas da chancelaria mostrariam a relevância do que ficou conhecido no meio militar e acadêmico brasileiro por diplomacia da defesa, algo comum nos EUA.
O segundo ponto é a distância, no campo das ideias, entre a agenda do Ministério da Defesa e a da pasta da Economia. As demandas de aumento dos gastos de defesa (de 1,5% para 2% do PIB), o financiamento estatal da infraestrutura científica e da base industrial de defesa, bem como a busca pela substituição de tecnologias estrangeiras, apontadas pelos documentos, são expressões da dissimetria. Infelizmente, não foi desta vez o debate sobre a institucionalização do Ministério da Defesa ou as relações civis-militares para a consolidação democrática do País.
Oswaldo Dehon, cientista político e professor de segurança internacional do Ibmec BH.
Crédito: Estadão