As audiências públicas realizadas no âmbito do Supremo Tribunal Federal para debater o juiz das garantias demonstraram o atraso do Brasil em relação ao restante do mundo democrático. Associações de magistrados e membros do Ministério Público apresentaram suas razões contra essa verdadeira evolução legislativa, sem convencer. Por outro lado, seus defensores mostraram como as democracias superaram os resquícios autoritários do processo penal e como a concentração de poderes nas mãos de um mesmo julgador é prejudicial. O tema merece grande reflexão, especialmente no país que possui a terceira maior população carcerária do mundo.
Mas, afinal, o que é o juiz das garantias? Inicialmente, cabe explicar que um processo criminal se desenvolve em duas partes. A primeira é a investigação realizada para colher os elementos probatórios suficientes para o Ministério Público oferecer denúncia contra o investigado; a segunda é o processo propriamente dito, no qual acusação e defesa produzem provas para, ao final, o juiz sentenciar. Na primeira fase, a da investigação, há o controle judicial sobre as medidas cautelares, como prisão preventiva, busca e apreensão de objetos, bloqueio de bens, entre outros. Esse controle é exercido pelo juiz que, ao decretar as providências, deve reconhecer que o acusado pode ser o suposto autor do crime.
Na outra fase, da produção de provas e julgamento, pela regra atual, o mesmo juiz que atuou durante a investigação é o responsável pela sentença final. Ou seja, o magistrado que, inicialmente, teve que se manifestar pela provável culpa do acusado, ao decretar medidas cautelares, é o mesmo que profere a sentença que poderá condená-lo ou inocentá-lo. Para compreender melhor, vejamos um exemplo: o delegado de polícia requer a prisão preventiva de um investigado e, para sua decretação, o juiz deve, necessariamente, reconhecer que há indícios suficientes de autoria de crime. Esse mesmo magistrado analisa a denúncia do Ministério Público e, posteriormente, vai proferir a decisão. A atuação prévia na fase de investigação, certamente, vai influenciar o juiz no processo, o que é natural, e sua imparcialidade ficará prejudicada.
O que se pretende com a instalação do juiz das garantias é dividir as tarefas de modo a garantir o julgamento por um juiz imparcial. Haverá um magistrado para cuidar das questões referentes à investigação e outro para presidir o processo. Nenhum será mais importante que o outro, apenas as atribuições serão diferentes e não haverá concentração de todas as atividades na mesma pessoa. Também não haverá dois juízes cuidando da mesma coisa, como alguns compreenderam mal; as tarefas, que começam no início da investigação e terminam com a sentença, serão compartilhadas.
Esse modelo já é aplicado na Europa e em quase todos os países da América Latina. Até mesmo os Estados Unidos, com um sistema judicial bem diferente do nosso, apresenta essa divisão de tarefas para reduzir as chances de contaminação do juiz responsável pela decisão. A Itália, cujo modelo é inspirador para algumas celebridades jurídicas, possui o magistrado responsável pelas medidas cautelares e aqueles que decidirão pela culpa ou inocência dos acusados. Em suma, em termos de sistema judicial democrático, o Brasil está muito atrás e precisa repensar seu modelo de processo penal.
Não podemos nos esquecer que a legislação processual penal brasileira é ainda a mesma influenciada pelas leis italianas fascistas do final da década de 30. Até agora, alimentamos um modelo em que o acusado é visto como culpado antes de qualquer decisão e que o juiz possui poderes para extrapolar sua genuína função, que é julgar de forma imparcial. Negar o juízo das garantias e manter um sistema autoritário que é manifestamente ineficaz e só serve a um objetivo: manter um regime de castas na sociedade brasileira, cada vez mais desigual.
*João Paulo Martinelli, advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra, e professor no Ibmec SP.
Este artigo foi publicado no Estadão, para conferir clique aqui.